Quarenta minutos antes do nada, proferiu o Criador: “faça-se
o Fla-Flu”. E só depois entendeu por bem criar os animais, os reinos vegetal e
mineral, e todos os elementos da natureza que hoje compõem a vida na Terra.
Dividiu, pois, a humanidade em dois grandes grupos: os
remadores e os praticantes de futebol. Entre os que remavam, muitos vinham do
setentrião e do meridião, do ocidente e do oriente, para conhecer e disputar aquele novidadeiro esporte da pelota de
couro pioneiramente trazido por aquela gente mais esclarecida.
Tudo transcorria em paz na instituição fundada por Oscar Cox, até
que um grupo de jogadores resolveu morder a maçã da dissidência e fundar um
departamento de futebol no seio da agremiação remadora. Foram proscritos do
Éden das Laranjeiras, condenados a viver com o suor de uma vida proletária, ao
contrário dos bem-nascidos tricolores.
No primeiro duelo entre pioneiros e dissidentes, percebeu-se
nestes últimos um traço de personalidade que viria a marcá-los pelas décadas
vindouras: a tendência a cair na esparrela do favoritismo. Com 9 antigos titulares
do escrete tricolor perderam a partida inaugural daquele que viria a ser o
maior clássico do mundo, para incredulidade geral. Dali, das arquibancadas
eternas de Álvaro Chaves, alguém bradou: “foi a camisa”. E ao Evangelho do
violento esporte bretão uma nova máxima foi acrescida: camisa ganha jogo.
Desde então nos enfrentam com um temor filial. “Ai Jesus”,
murmuram, até mesmo em cântico. O histórico registra maior número de vitórias para
eles. Para nós, o maior número de vitórias que realmente importam, em finais.
Ao contrário do Filho Pródigo, que retornou à casa paterna,
o filho rebelde jamais regressou. Até
hoje prospera e se alicerça nas facilidades oferecidas pelos poderes mundanos. A
única semelhança com o personagem bíblico é que são de fato pródigos, ou seja, gastam
mais do que arrecadam e acumulam a maior dívida do futebol nacional.
Os gentios rubro-negros colecianaram ao longo tempo, por
assim dizer, inimigos, assim considerados por lhe devotarem ódio ou desprezo.
Sobre estes povos inimigos aplicaram derrotas dolorosas, por vezes ao arrepio
da regra do jogo. Mas não conosco. Somos os únicos oponentes sobre os quais
embargam a voz ao falar. Foram cicatrizes deixadas por um certo Santo Carrasco,
de nome Assis, ou um Santo Graal que levantamos após empurrarmos a bola com a
barriga. Esperaram, então, o momento da vingança, de maneira ardilosa.
E este momento chegou.
Regozijaram-se ao testemunhar nossa derrocada (para a qual contribuíram, entregando jogo) rumo ao purgatório de
estranhas divisões no fim da década de 90. Proferiram impropérios enquanto
nossas cabeças sangravam com uma simbólica coroa de espinhos. Quando quiseram
se certificar da deterioração de nosso cadáver, encontraram o túmulo vazio. Não
demorou e se defrontaram com nossa ressurreição. A desforra havia se iniciado, mas não se completara.
A Páscoa Tricolor teve prosseguimento em 2005, 2007, 2010 e
2012 onde os justos colheram o fruto de sua fidelidade ao bem enquanto os
ímpios se refestelavam na inveja e no recalque. Uma certa horda, tendo por
brasão uma cruz vermelha e por embarcação uma caravela com furos no casco,
inconformava-se por ver a rivalidade tão duramente construída a golpes de caixa
d’água esvaziar-se pela inexpressividade dos seus resultados em campo.
Seu sacerdote, ávido consumidor de charutos incandescentes,
aliou-se pois, a um publicano, um recolhedor de taxas e impostos, amaldiçoado
nos 12 reinos das Laranjeiras, pelo parasitismo que exercia na presidência da
federação, uma entidade meramente arrecadatória, com métodos ditatoriais, à
feição do que fôra o império romano em solo palestino.
A sanha conspiratória desta aliança entre o líder dos
cruzados e o publicano trouxe prejuízos de tal monta aos gentios rubro-negros e
ao Povo Escolhido, que ambos preferiram deixar ancestrais rivalidades de lado e
unirem-se em nome da ressurreição do futebol carioca. Neste próximo domingo,
ambos estarão em campo, manifestando seu desagravo a esse conluio das trevas e
disputando o clássico arquetípico da humanidade. Que dê liga.
Palavra da salvação. Feliz Páscoa.
Por Bruno Leonardo
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