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Equipe tricolor comemora unida o gol da vitória, assinalado por Gustavo Scarpa (Foto: Nelson Perez/Divulgação FFC) |
O primeiro
tempo foi brigado, feio, cada palmo de chão milimetricamente disputado, pouca
bola no chão, muita bola disputada pelo alto, uma cabeçada na trave, e fim de
papo. O Fluminense, muito desfalcado, fez o que dele se esperava: com uma
escalação teoricamente inferior ao do adversário, buscou equilibrar a partida
na raça, uma raça quase kamikaze, de quem não preza a integridade das próprias
canelas ou cabeças.
As coisas
começaram realmente a acontecer no intervalo. Durante o dia havia debatido com alguns tricolores,
pelo Twitter, as razões pelas quais não
conseguíamos obter uma melhor média de público no campeonato. Em certo momento,
embicamos o papo para o lado da “experiência de ir ao estádio”. E foi no
intervalo do jogo que a experiência de ir ao Maracanã se fez pagar.
De repente,
rompia no gramado uma falange de crianças trajadas com nosso terceiro uniforme,
como se o time profissional tivesse mergulhado num lago da juventude e voltado
miniaturizado. Aquela alegre revoada de vidinhas novas, com seus braços e
pernas tão curtos que mal excediam o uniforme, correu a se atirar sobre nosso
escudo. E não só se atiraram, pareciam rolar e se aninhar sobre ele, como se o
distintivo tricolor fosse um local acolhedor, tal qual um segundo útero materno. O Maracanã naquele instante, se fez poesia. Tratava-se do
nosso time de futsal sub-7, campeão estadual. Não sei quantos deles serão
futuros craques, ou darão jogador. Alguns serão o futuro do nosso futebol,
outros o futuro da nossa torcida. Mas todos, ainda tão novos, já conhecem o que
é ter Amor ao Tricolor.
Logo em
seguida, o futuro abria passagem ao presente: o telão do Maior do Mundo
revelava a visita ilustre de Thiago Silva, instantaneamente recepcionado com
carinho pela torcida ao ser reconhecido. O Monstro, longe do juízo implacável
dos analistas de choro, era acolhido por quem de fato lhe quer bem. Um momento essencialmente tricolor, e um
pedido nostálgico de “volta”. O momento de idolatria deve ter sido pedagógico
para o novo reforço tricolor, Osvaldo, que foi apresentado logo em seguida. O
atacante pôde ter em Thiago uma demonstração de como a massa tricolor remunera
com afeto quem defende nossa mortalha com transpiração e talento.
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Garotada sub-7 do futsal é apresentada à torcida no intervalo da partida (Foto: Nelson Perez/Divulgação FFC) |
Parece que
aquele banho de Fluminense na alma contaminou positivamente o próprio jogo, que
voltou bem mais movimentado para o 2º tempo. O Fluminense continuou a dar a
posse de bola para o Cruzeiro, só que desta vez com o contra-ataque melhor
encaixado. Se o 1º tempo foi apenas vontade, o 2º tempo evidenciou duas marcas
do trabalho de Enderson Moreira: a evolução defensiva e a mudança do papel
tático de Fred. Sob o comando de Cristóvão, e também na breve passagem de
Ricardo Drubscky, o Fluminense era um time cruzador de bolas para um Fred
enfiado entre os zagueiros, esperando resolver o jogo numa finalização de
cabeça.
Sob o comando
de Enderson, a finalização fica a cargo de diferentes jogadores. Fred, por
ofício, permanece preenchendo a área, mas também sai frequentemente dela para
atrair a marcação e tabelar com os meias, e o resultado é que a finalização
cabe a quem chega de trás em velocidade: ora com Marcos Júnior, ora com Gerson.
Foi assim, aos 8 minutos da etapa complementar que quase abrimos o placar, num belo
passe de Gerson que cruza toda a extensão da área e encontra o Resolve no
segundo pau, que conclui de carrinho para fora. Aos 21 minutos, Scarpa tenta um
chute cruzado de fora da área, que obrigou Fábio a praticar difícil defesa.
Não havia
neste particular momento do jogo a garantia da vitória, mas como qualquer
torcedor tricolor, me especializei com o tempo em pressentir o que o Fluminense
nos reserva. Virei para o nosso mago das notas, o Eduardo Kabessa, e pontifiquei:
“vamos vencer esse jogo”. Estava nítido que o Cruzeiro tinha mais tempo de bola
no pé e o Fluminense tinha mais gana de vencer. O Cruzeiro especulava, o
Fluminense agredia.
Até que aos
28 minutos, Gerson é lançado e derrubado por Willians, num lance que ilustra o
caráter da arbitragem brasileira. O empurrão cometido pelo volante cruzeirense
foi da mesma natureza daquele perpetrado por Reinaldo na partida anterior, no
Morumbi. Por ter sido fora da área, o irritante e egocêntrico Héber Roberto
Lopes não titubeou, e com altivez, assinalou falta. Fosse dentro da área, o soprador
de apito daria as costas e mandaria o jogo seguir. A falta cristalina se
converteria em “lance polêmico” e mais uma garfada contra o Fluminense seria
convenientemente esquecida por aqueles que cultivam a indignação seletiva.
Pressentindo que
naquela cobrança de falta poderia nascer a vitória, a torcida do Fluminense
mergulhou em prece. As arquibancadas passaram a entoar “A bênção, João de Deus”
com convicção raras vezes vista. Católicos, evangélicos, judeus, ateus, umbandistas,
candomblecistas, tricolores de todas as crenças, se irmanaram nessa canção
ecumênica, que nos une sob o estandarte de uma religião em comum: o Fluminense.
O blogueiro que vos escreve mentalizou um enorme João de Deus abraçando a cobertura
do Maracanã, enquanto desenhava mentalmente o placar se alterando para 1x0. A torcida tricolor deixava naquele instante a
imparcialidade com Deus, mas reivindicava sem parcimônia João de Deus para si.
E ele mais uma
vez não se fez de rogado! Rolada de Jean para Gustavo Scarpa e a bomba santa
estufava as redes fabianas no canto direito. Gol do Fluminense! O Maracanã veio
abaixo, e a massa tricolor permaneceu entoando o João de Deus como um mantra,
uma sessão coletiva de transe místico. Num único e amplo abraço, regado a muito choro, coube mais gente do que eu poderia supor: eu, a Dani, o Kabessa, a Elenir, a Gabi, o Gerson (não o jogador, rs), amigos que o Fluminense me deu para o resto da vida. Lá embaixo no campo nascia mais uma vitória santa,
dessas que o Fluminense não constrói com volume de jogo e estatísticas
amplamente favoráveis, mas por fazer do querer uma força bruta, insuperável.
O Fluminense
segue encantado. Não há perda que pareça irreparável, não há jogador que pareça
insubstituível. Começou lá no início da temporada quando Conca e Cícero se
mandaram. Agravou-se com a lesão de Vinicius e a saída repentina de Wagner. Os
idiotas da objetividade viam um Fluminense enfraquecido, sem jogadores de
grife, sem patrocinador forte, sem horizonte. Eis que nossa vocação para a
eternidade foi se valer de Xerém, a sempre desacreditada Xerém, para nos manter
de pé. E vêm mais por aí, com Osvaldo, possivelmente Wellington Paulista e quem
sabe, Ronaldinho Gaúcho. Não estou nem aí para as boemias do dentuço, caso ele
feche conosco. O Fluminense a tudo domina. Caiu nas Laranjeiras, virou guerreiro.
Se não for guerreiro, é corpo estranho e tratamos de expelir.
TIRO LIVRE:
- Foi arrepiante ver Fred, ao fim do jogo, com a voz embargada, enaltecer a ascensão da garotada de Xerém no time profissional e afirmar que o Fluminense está dando uma resposta a todos que previam sua derrocada após o rompimento com a Unimed. Alguns raros tricolores ainda o vêem como um estorvo. Fizeram questão de apontar o camisa 9 como a causa da nossa queda de desempenho no brasileiro do ano passado, ao voltar da Copa. Outros olham apenas para seu contracheque e questionam seu custo-benefício. Um líder técnico e moral como Fred não se acha em qualquer esquina. Qualquer economia nesse sentido é porca. Qualquer questionamento de sua importância é miopia grave. Viva Fred!
- O Ministério Público do Rio de Janeiro recomendou e a CBF acatou: teremos duas torcidas no clássico contra o Vasco. Choram, abraçados e se consolando mutuamente, Charutos e Roubinhos, em uma tentativa frustrada de sepultar uma tradição do futebol carioca. Mas a torcida, a bem da verdade, permanece única. Ou alguém há de negar que a torcida tricolor é única?
- Partidaças de Marcos Júnior, Wellington Silva, Pierre e Jean. Vi, sinceramente, evolução de Gerson na marcação e na intensidade de jogo. Menção honrosa para Gustavo Scarpa, demonstrando muita personalidade na tarefa de substituir Wagner. E até o que eu mais temia, que era a improvisação de Victor Oliveira na lateral esquerda, não nos causou maiores problemas. Ainda que visivelmente nervoso, o jovem defensor ao menos fez bem seu papel de ser um zagueiro pela esquerda. O Fluminense está mesmo encantado.
Por Bruno Leonardo
Por Bruno Leonardo
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